Os direitos fundamentais em tempos de pandemia – I
OS DIREITOS FUNDAMENTAIS EM TEMPO DE PANDEMIA ACESSE NOSSO SITE
À
vista da exponencial disseminação do assim chamado “Coronavírus”
(COVID-19) em já grande parte do planeta e dos seus nefastos efeitos,
passados, presentes e futuros, efeitos que, aliás, têm impactado uma
gama altamente diversificada de esferas da vida pessoal e coletiva, dos
interesses privados e públicos, as reações têm sido igualmente variadas
em múltiplos aspectos.
Dada a ênfase
desta coluna, o nosso olhar sobre o fenômeno será o de uma perspectiva
jurídico constitucional, destaque dado aos direitos e garantias
fundamentais no Brasil, mas necessariamente também voltado ao que se
passa em outros países e mesmo na esfera do direito internacional dos
direitos humanos.
Isso se justifica a partir de várias razões, dentre as
quais, a circunstância de que os efeitos da contaminação e sua
disseminação não respeitam fronteiras, ainda que se as fechem, assumindo
uma dimensão global. Além disso, as experiências vivenciadas em outros
países, seus erros e acertos, são cruciais para a tomada de medidas de
modo informado, racional e preventivo, lhes assegurando maior eficácia.
Outrossim, também os problemas jurídico-constitucionais são, em grande
medida, idênticos ou similares, assim como as possibilidades e limites
do Direito no que diz com o seu manejo.
É
claro que, a despeito de muitos elementos substancialmente comuns, há
peculiaridades do direito positivo, da tradição jurídico-política que
podem implicar a necessidade de uma devida filtragem e ajuste quando de
sua recepção, além de impor diferentes modos de enfrentamento dos
desafios postos ao Direito, notadamente ao direito constitucional, num
momento de crescente crise e convulsão social. Ademais disso, a própria
configuração do Estado, de sua forma de governo, regime político e
sistema de governo, instrumentos colocados à disposição dos diversos
atores estatais e da sociedade, também impactam a natureza e eficácia
das medidas tomadas (e não tomadas).
É
possível mesmo afirmar que situações como as quais se está vivenciando,
tornam, temporariamente, secundárias milhares de questões e problemas
com os quais lida o Direito, deslocando o foco para a necessidade
urgente de identificar, avaliar e equacionar centenas de desafios ao
direito constitucional.
Como bem coloca o editorial do conhecido Verfassungsblog (www.verfassungsblog.com),
edição de 20.03.20, à vista da falta de ensejo para tanto, muitas
perguntas sequer foram (ou muito pouco) objeto de atenção por parte dos
juristas, em especial dos constitucionalistas. Ainda de acordo com o
referido editorial, um estado de exceção, no sentido genérico, tido como
um estado de anormalidade e risco coletivo, que impacta o funcionamento
regular das instituições públicas e da vida social e econômica), “não
opera apenas como o quadro, mas também é o objeto de nosso agir: nada é
mais problemático e complicado.
A exceção à normalidade pacífica, nesse
contexto, refere-se, ao fim e ao cabo, às competências, procedimento e
limites de decisões coletivas vinculantes: dito de outro modo, ao
direito constitucional e sua validade e eficácia”1.
Precisamente
essa assertiva nos remete ao que talvez seja o principal e mais urgente
problema e desafio do ponto de vista constitucional (que as medidas
emergenciais do primeiro enfrentamento em termos de saúde pública são
prioritárias resulta evidente!), designadamente, a defesa e manutenção,
inclusive o fortalecimento, da Democracia e de suas instituições, e do
Estado de Direito. Sem isso, a proteção dos direitos fundamentais e dos
princípios estruturantes do nosso Estado Democrático de Direito está
colocada em sério risco, até mesmo pelo fato de inexistir Estado
Democrático de Direito sem direitos e garantias fundamentais, do mesmo
modo que na ausência ou grave comprometimento desses implode a ordem
constitucional democrática.
Portanto, já
por tais razões mais do que justificável que nos dediquemos, no
contexto desse quadro geral que demarca o início de uma série de
colunas, ao que temos (ainda) de mais precioso e que foi conquistado
mediante a democratização do nosso País, mediante a promulgação, em
5.10.88, de nossa mais democrática Constituição Federal.
Estabelecendo
aqui um vinculo direto e umbilical com a teoria geral dos Direitos
Fundamentais, verifica-se que a principal fonte de violações está
relacionada ao fato de que tanto as medidas engendradas e concretamente
aplicadas, ainda que com o escopo de proteger a saúde e vida da
população, quanto omissões, envolvem restrições aos direitos e garantias
do cidadão, seja no sentido de uma intervenção constitucionalmente
ilegítima no seu âmbito de proteção, seja em virtude da ofensa ao dever
estatal de proteção suficiente, figuras que aqui não iremos desenvolver,
inclusive por se tratar de ponto a ser abordado em outras colunas.
O
ponto nodal da questão, contudo, como, aliás, amplamente conhecido, não
é o fato corriqueiro da restrição a direitos, característico e
indissociável do dia a dia da vida numa sociedade politicamente
organizada, mas sim, a sua legitimação jurídico-constitucional, que
parte do pressuposto (essencial ao Estado Democrático de Direito), de
que os fins não justificam o uso de todo e qualquer meio e da conexa
(mas não idêntica) proibição de arbítrio.
A
questão se agudiza e se torna particularmente ameaçadora quando se
busca instrumentalizar o estado de anormalidade e crise, utilizando-o
como pretexto para captar a simpatia e angariar apoio popular e
político, de modo a arrancar a fórceps, sob o manto da legitimidade
constitucional, a autorização para a decretação – no caso brasileiro, de
um estado de defesa ou mesmo de um estado de sítio – situações nas
quais, durante a sua vigência, uma série de fortes restrições a direitos
e garantias fundamentais da população pode ser autorizada.
Sabe-se,
por outro lado, que situações de grave crise e instabilidade, mormente
quando em cheque a saúde e a vida, autorizam – e isso mesmo ausente
decretação formal de qualquer um dos estados de exceção constitucional
previstos na CF, a tomada de medidas mais rigorosas, que, por sua vez,
implicam a restrição, em nível mais acentuados, de alguns direitos e
garantias fundamentais, tudo condicionado também a um controle
igualmente mais vigilante de sua consistência jurídica e dos respectivos
critérios. Aliás, é o que, por ora, se está verificando também entre
nós, o que, é bom frisar, não quer dizer que todas as providências sejam
constitucionalmente (mas também legalmente) corretas, convocando os
atores responsáveis à sua fiscalização, que poderá levar à sua supressão
ou reformatação.
Tal constatação, ao
invés de sugerir que decretar um estado de sítio ou de defesa é, ao fim e
ao cabo, trocar “seis por meia dúzia”, indica justamente o contrário:
os referidos estados de exceção constitucional só podem ser
legitimamente instaurados quando for manifestamente inviável dar conta
da gravidade dos problemas pelas vias até então levadas a efeito.
Além
disso, mesmo que se trate de uma típica hipótese autorizativa da
decretação de um estado de exceção constitucional pelo menos três
diretrizes se impõe: a) a rigorosa observância dos critérios materiais e
procedimentais inscritos na CF; b) que o conteúdo e alcance das medidas
previstas e impostas seja consistente com a máxima da interpretação
restritiva das medidas restritivas, aqui ainda mais rigoroso, no sentido
de uma ultima ratio; c) que o estado de sítio, tal qual
disposto no artigo 137, somente possa ser decretado nos casos de comoção
grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a
ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa, ou então quando
declarado o estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira;
Basta,
portanto e por ora, uma mera leitura do texto constitucional para que
se perceba a absoluta impossibilidade da decretação de um estado de
sítio antes de esgotadas as alternativas anteriores, já referidas.Qualquer
apelo público, tanto mais a proposição formal de um pedido de
autorização para a instalação de um estado de sítio, por si só já
corresponde a uma ofensa aos mais elementares valores e princípios de um
Estado Democrático de Direito e, no caso brasileiro, frontal,
inequívoca e inadmissível violação da CF, especialmente quando
originária daqueles que juraram solene e publicamente, fidelidade à
nossa ordem constitucional, seja a qual poder ou instituição pública
pertençam.
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