MULTIPARENTALIDADE RECONHECIMENTO

FONTE:    STJ    03/03/2019
, uma de suas mães.

Quando Ingrid chamou Luzia de mãe pela primeira vez, tinha quatro anos e queria ir passear com a roupa cor de rosa. Ao nomear a relação entre as duas, reconheceu todo o afeto, cuidado e amor dispensados pela então “tia”. Juntas, na cumplicidade de uma relação construída, aprenderam a ser mãe e filha. Pouco mais de duas décadas depois daquele dia, a certidão de nascimento de Ingrid também passa a registrar essa relação: ela tem duas mães e um pai.
A morte precoce da mãe biológica e da avó em um acidente de carro em São Paulo, quando Ingrid Fernanda de Sousa tinha menos de dois anos de idade, alterou a estrutura familiar, que, em um ano, mudaria outra vez, com o novo casamento do pai. Assim, durante toda a sua vida coexistiram lembranças e fotos da genitora com o presente e as memórias construídas no novo arranjo familiar.
“A alteração no registro já era uma vontade minha, porque desde criança essa era uma situação que me incomodava. Como a minha mãe morreu quando eu era muito nova e quem esteve à frente de tudo foi a minha mãe que é a minha madrasta, eu sempre senti essa necessidade. Quando completei 18 anos, decidi ir atrás disso”, conta a jovem.
Ao cursar a faculdade de direito, Ingrid foi informada por professores de que já havia alguns entendimentos que possibilitavam o reconhecimento da multiparentalidade, mas tudo ainda estava em fase muito inicial. Então, ela decidiu esperar mais um pouco.
Sem hierarquia
As constantes mudanças na sociedade e na organização familiar, em especial nos casos de relações fundadas no afeto, também transformaram a maneira de interpretar o direito de família e os elos de parentalidade.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ), as decisões têm procurado garantir o melhor interesse da criança, do adolescente ou mesmo de adultos, uma vez que a filiação faz parte da formação da personalidade e da identidade do ser humano.
Dessa forma, a filiação socioafetiva tem sido reconhecida na solução de conflitos, sendo amparada judicialmente no Tribunal da Cidadania – assim como a busca pela verdade biológica e pela ancestralidade, que também encontra respaldo na jurisprudência do STJ.
Em março de 2017, ao analisar o recurso especial de um homem que, após 60 anos, descobriu que o seu pai biológico era outro que não o registral e pleiteava a alteração em sua certidão para incluí-lo, o relator, ministro Villas Bôas Cueva, explicou que o reconhecimento de um tipo de filiação não implica a negação da outra.
“Não há mais falar em uma hierarquia que prioriza a paternidade biológica em detrimento da socioafetividade, ou vice-versa. Ao revés, tais vínculos podem coexistir com idêntico status jurídico no ordenamento, desde que seja do interesse do filho”, disse.




Compatibilidade
Para o ministro, a existência de vínculo com o pai registral não é obstáculo ao exercício do direito de busca da origem genética ou de reconhecimento da paternidade biológica. “Os direitos à ancestralidade, à origem genética e ao afeto são, portanto, compatíveis”, entendeu.
Nessa linha, o Supremo Tribunal Federal (STF), em 21 de setembro de 2016, havia julgado o Recurso Extraordinário 898.060, com repercussão geral reconhecida (Tema 622), sobre a possibilidade de prevalência da paternidade socioafetiva em relação à biológica, fixando contornos acerca da multiparentalidade.
Ao deliberar a respeito do mérito da questão, o STF, por maioria, optou por não afirmar nenhuma prevalência entre as modalidades de vínculo parental, apontando para a possibilidade de coexistência de ambas.
Solução no cartório
Ao ficar noiva, no ano passado, Ingrid decidiu que era o momento de alterar seu registro. “Uma opção era fazer a adoção e isso me incomodava, porque eu não queria tirar minha mãe biológica do registro. Não queria perder esse vínculo, porque faz parte de quem eu sou.”
Assim que se formou, ela resolveu ajuizar uma ação para incluir Luzia no registro. Contudo, ao tomar conhecimento do Provimento 63 da Corregedoria Nacional de Justiça (editado quando o corregedor era o ministro João Otávio de Noronha, atual presidente do STJ), decidiu tentar primeiro no cartório.
O provimento instituiu modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, além de dispor sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetivas.
Dois dias após a ida ao cartório, Ingrid já estava com o novo documento em mãos. “Lá me explicaram que, como eu era maior de idade, só precisava que a minha mãe estivesse de acordo e fosse comigo, que eles fariam a alteração. Em nenhum momento questionaram a minha vontade”, lembra.
Visão humanista
Segundo o ministro Villas Bôas Cueva, a evolução na legislação sobre família ocorreu principalmente com a Constituição Federal de 1988, que, em seu artigo 227, parágrafo 6°, reconheceu a igualdade entre as filiações. Anteriormente, no Código Civil de 1916, havia a primazia da verdade biológica para fins de configuração do estado de filiação, limitando o registro às relações consanguíneas.
“No que se refere ao direito de família, a Carta inovou ao permitir a igualdade de filiação, afastando a odiosa distinção até então existente entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos, além da pluralidade de entidades familiares, que não apenas se fundaria no casamento formal. A legislação, até então preconceituosa, cedeu lugar a uma visão humanista da família, sustentada especialmente no afeto”, explicou.
Ele ressaltou que o artigo 1.596 do Código Civil de 2002 estabelece que todos os filhos, independentemente de sua origem, possuem os mesmos direitos. Além disso, o diploma legal menciona, em seu artigo 1.593, que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem – o que, para o ministro, “explicita uma cláusula geral e aberta, permitindo que a socioafetividade seja elevada ao patamar de parentesco civil”.
De acordo com Villas Bôas Cueva, “as aludidas normas constitucionais e infraconstitucionais refletem a nova realidade jurídica brasileira que, ao lado da paternidade biológica, também reconhece a socioafetiva, calcada no amor e nos cuidados conferidos a quem se tem por filho, ampliando sobremaneira o conceito de filiação”.
Reconhecimento
“Quando ela falou que ia fazer a mudança no registro, eu disse que não fazia questão, porque o meu sentimento por ela é de mãe; o papel é indiferente”, recorda Luzia. No entanto, com a nova certidão da filha nas mãos, ela reconhece que a importância do ato vai além.
Agora, Ingrid passa a ter direitos como herdeira, além de poder interferir em questões importantes para os pais. “Caso acontecesse alguma coisa, ela não teria direito a nada, então não seria justo, porque ela faz parte da minha vida e ajudou a construir tudo o que a gente tem”, completa Luzia.
“Eu acho que é uma via de duas mãos”, avalia a filha. “Eu vou ter os direitos patrimoniais, mas também, quando ela precisar de mim, eu entro como filha para tomar decisões, se precisar resolver qualquer problema para ela. Quando eu tiver filhos, o nome dela também vai constar na certidão deles. São questões que vão além das circunstâncias de agora.”
Segundo ela, a atitude foi vista por muitas pessoas – inclusive pela família de Sônia, a mãe biológica – como um reconhecimento à dedicação e ao amor da mãe socioafetiva. “Nós somos muito próximas. Ela é a minha referência como ser humano e mãe”, confirma Ingrid.
A série 30 anos, 30 histórias apresenta reportagens especiais sobre pessoas que, por diferentes razões, têm suas vidas entrelaçadas com a história de três décadas do Superior Tribunal de Justiça. Os textos são publicados nos fins de semana.
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